domingo, 31 de julho de 2011


ele ficou parado olhando para a rua como se um búfalo lhe impedisse a passagem. como se o laço que não tinha em mãos fosse curto demais. como suas pernas e aquela lembrança de bolinhos saídos do forno roubada de proust. uma vez, e isso fazia um bom tempo, enfiara um lápis nas costas de um colega de classe. pensou em, quem sabe, voltar a vê-lo e contar que havia comprado um telescópio e observara por horas a trajetória de um balão meteorológico. o búfalo mexeu por um instante a pata dianteira mas não saiu do lugar. parecia até maior.

quinta-feira, 28 de julho de 2011


ele ficou olhando para a bacia cheia de cebolas. depois pegou uma por uma e descascou. ela entrou e perguntou, por que fez isso? ele não respondeu e ficou olhando para a bacia cheia de cebolas descascadas. ela foi jogando suas roupas pela sala e em seguida os sapatos. aí ele empilhou as cebolas descascadas, montou uma pirâmide e gritou, venha ver o que eu fiz, mas ela prestava atenção em outra coisa. quando ela acordou as chamas já tomavam toda a cozinha.

terça-feira, 26 de julho de 2011


"A maneira certa de se engolir um guarda-chuva é pela parte de cima caso você se preocupe em manter o mínimo da integridade dos seus órgãos. Mesmo que o sabor não seja de seu agrado é pertinente que você controle sua ânsia ou o processo será fatalmente revertido. Evite utilizar aqueles com acionamento automático". Ele disse isso como quem lê um manual de eletrodoméstico ou prega para meia dúzia de descrentes. Aí saiu. Olhou para o céu e estendeu a mão direita com a palma voltada para cima. Usava um terno preto tingido de bolor que fora, ele disse, de seu pai. Tranquei a porta e conferi a previsão do tempo para os próximos cinco dias.

domingo, 24 de julho de 2011

ele disse que se fôssemos pescar aprenderíamos muita coisa sobre a vida e sobre nós. pesca mortal. ele vinha acompanhando o programa desde que a tal operadora de TV a cabo oferecera quinze dias a título de degustação. eu tinha dez minutos até o mercado baixar as portas e um velho all star nos pés. deixei sobre a mesa da cozinha uma lata de sardinhas em óleo comestível e um bilhete. cuidado com as espinhas. foi o que eu pude fazer. e eu tenho essa mania de nunca olhar para trás.

quinta-feira, 21 de julho de 2011


olha, ele disse enquanto se ajeitava no sofá, amanhã vou embora. ela pensou na consulta que teria com a nutricionista logo cedo. perderia oito quilos ainda antes do verão. ele continuou segurando sua mão e quase disse, vai ser melhor assim. há sete anos tiveram o primeiro filho. depois o segundo. aí ela arrumou aquele cara e ele descobriu e disse, querida, você estragou um bocado as coisas. nunca mais tocou no assunto. era importante ela se lembrar de avisar a nutricionista que sofria de doença celíaca.

terça-feira, 19 de julho de 2011


ele ficou olhando para a borda virada do tapete e depois olhou para a porta. pensou em comprar um exterminador elétrico de mosquitos e uma ratoeira ultrassônica. queria se chamar steve mcqueen e contar para sua vizinha sobre seus dias no cárcere. ele diria, entre, é só tomar cuidado com as armadilhas. colocaria o pé sobre a borda virada do tapete caso ainda não a tivesse ajeitado.

sábado, 16 de julho de 2011


sonhei que os números da mega sena eram um anagrama do teu nome e que o amor era servido numa bandeja. aquela velha gorda pegou um pedaço com um garfo de sobremesa e limpou os lábios com as costas da mão. aí ela gritou, bingo!, mas ninguém ouviu.

sexta-feira, 15 de julho de 2011

PRECEITOS BÁSICOS E AVISOS ADICIONAIS A JOVENS ESCROQUES 
Jim Dodge
Não tente roubar uma vaca maior que sua caçamba.
Não mostre seu rabo pra Polícia Rodoviária.
Negociatas longas com grana curta é prejuízo na certa.
Não confunda o Evangelho com a Igreja.
Nunca dedure familiares ou amigos.
Evite morar em qualquer lugar onde não dê pra mijar da porta da frente.
Só porque é simples não significa que é fácil.
Não deixe seu olho grande preencher cheques que sua barriga vazia não possa bancar.
Se você não a quer, não a provoque.
Não estacione entre dois cachorrões jogando sujo.
Qualquer um amassa tomates; o foda é fazer o molho.
Nunca se é pobre demais para deixar de prestar atenção.
Não remoa por aí suas paranóias.
Nunca durma com uma mulher que considere isso um favor.
Se for atingido por um valentão, dê-lhe a outra face.
Se rolar de novo, atire no filho da puta.
Manter é sempre duas vezes mais difícil do que conseguir.
Nunca atravesse uma cidade pequena a 120 por hora com a filhota do xerife nua na garupa.
Nunca registre o preto no branco.Se você não está confuso então não tá entendendo nada.
Amar é sempre mais difícil do que parece.

quarta-feira, 13 de julho de 2011


eu apoiava a cabeça assim no teu colo e te perguntava sobre a guerra do golfo. você dizia antes as coisas eram diferentes e me contava como o marechal alemão Erwin Rommel fora detido em 1941. você fazia um teatro de sombras antes de falar apague o abajur e vamos tentar dormir. eu nunca entendi como você conseguia projetar aquela tarântula na parede, aquela que você explicava, não é tarântula é uma viúva negra. eu era uma péssima taxidermista e você pode ter confundido com desinteresse. e enquanto eu fingia que dormia você se levantava e observava a chuva pela janela. passava horas parado ali. eu devia ter te dito, vai ficar tudo bem, deita aqui comigo.

segunda-feira, 11 de julho de 2011


Eu disse a ela você vai ficar toda enrugada. Ela riu e me perguntou se eu seria capaz de assassiná-la com um secador ligado. Acendi um cigarro e deixei-a tragar tocando levemente em seus lábios. A fumaça se misturou ao vapor condensado no espelho. Já não era tão bonita.

quinta-feira, 7 de julho de 2011


baby, tô em ponto morto. você entende, não é? tô pegando só ladeira pra baixo que é pra nem pensar no aumento da gasolina ou no licor de qualquer porra de fruta tropical que resolveram misturar à vodka. lembra daquela passeata solitária que fiz no meio da sala a favor da ingestão de bebidas puras? pois é, baby, não mudei muito. ainda acordo com a cabeça estourando e juntando flashes da noite anterior. flashes. como se eu fosse uma espécie de godard, olha a merda. mas passa rápido porque inevitavelmente eu penso no renato russo e naquela baboseira de eduardo e mônica. é, eu continuo odiando legião urbana e josé saramago. e eu não vou tentar mudar nem uma coisa nem outra só porque os caras não estão mais por aqui. não quero aprender mais nada, seja real ou do além. se um dia eu precisar de alguma ação eu paro um policial na rua e peço uma revista. daí eu o processo por assédio sexual através de um desses advogados reprovados no exame da OAB. só pra ver o que não acontece. eu continuo a melhor espectadora da vida. eu assisto o mesmo telejornal duas vezes por dia e finjo não perceber que espancamentos e acidentes de trânsito têm pautas maiores na edição noturna. e que continuar te amando é pura preguiça de minha parte. é, baby, tô em ponto morto.

quarta-feira, 6 de julho de 2011

Ninguém alguma vez escreveu ou pintou, esculpiu, modelou, construiu ou inventou senão para sair do inferno.
Antonin Artaud

terça-feira, 5 de julho de 2011


Preciso parar de comer demais, de ler Raymond Carver, de lembrar da tua voz, de passar debaixo de fiações cheias de pombos alimentados por grãos de milho, de rever aquele filme, de queimar meias-calças com brasa de cigarro, de lembrar da tua voz, de ouvir Crazy Heart, de armazenar números novos no celular, de organizar folhetos de pizzaria, de pedir jornais velhos ao vizinho, de lembrar da tua voz, de assistir leilões de gado na televisão, de errar a última saída da estrada, de somar números de placas de automóveis, de perder a borda solta do rolo de durex, de lembrar da tua voz, de sacar dinheiro no quinto dia útil do mês, de comprar botas em lojas virtuais, de lembrar, ainda, da tua voz.

Sou uma menina de sorte
tenho onze anos de idade
e este é um bom lugar
pra continuar a viver

Eu gosto de roubar uns pedaços de poesias do Lalo Arias