quarta-feira, 24 de agosto de 2011

“Rédea”, digo. Levanto a rédea na janela e olho para ela sob a luz. Não é uma peça decorativa, é só uma rédea velha de couro escuro. Não sei grande coisa sobre rédeas. Mas sei que uma parte encaixa na boca. Essa parte é chamada de freio. É feita de aço. As tiras dão a volta pela cabeça do cavalo e sobem até onde ficam seguras entre os dedos do cavaleiro, no pescoço do animal. O cavaleiro puxa as rédeas para um lado e para o outro, e o cavalo vira. É simples. O freio é pesado e frio. Se a gente tivesse de usar um negócio desse enfiado nos dentes, acho que ia entender rapidinho. Quando sentisse puxar, a gente ia saber que estava na hora. A gente ia saber que estava indo para algum lugar.

A rédea. Raymond Carver. Trecho final.

segunda-feira, 22 de agosto de 2011


você sabia, né, meu bem? eu coloquei aquela minha velha capa do mandrake e vomitei meia-dúzia de profecias enquanto girava a cartola com a mão esquerda. adquiri habilidades ambidestras, te contei? acabei batendo boca com um daqueles peruanos que vendem cd´s com versões horríveis de simon e garfunkel só porque tentei convencê-lo a montar um negócio de bungee jump no viaduto beneficência portuguesa. ele me disse que era do chile ou coisa assim e que eu tinha cara de agente da imigração. você me conhece, isso de colocar cara em mim me tira do sério. você precisava ver, juntou uma multidão, era horário de pico, cheio de gente afoita pra pegar o metrô e voltar pra casa. na hora que a coisa ficou feia de verdade eu fui embora. não vou mentir, me deu um certo pânico e quase senti um batalhão atrás de mim. mas eu nem olhei pra trás. subi os dois quarteirões até a rua de casa e bem na esquina dei um duplo mortal caindo em parada de mão. habilidades ambidestras deixam qualquer lição de vida no chinelo.

sábado, 20 de agosto de 2011

faltavam poucos minutos para o início do noticiário e o ar estava úmido demais. ela desceu as escadas se apoiando no corrimão, se aproximou dele e disse, estou com um gosto estranho na boca. ele coçou o queixo, aquela loção pós-barba era de péssima qualidade. o puto do cachorro abanava o rabo para a parede vazia e ela explicou, ele vê coisas. foi então que o âncora anunciou ataques incendiários em londres e ele sentiu uma gota de suor escorrer pelo rosto. saía bem do meio da testa.

terça-feira, 16 de agosto de 2011

E se eu realmente me importasse com o que você me diria agora, eu traduziria suas palavras como a fácil lição de encarar um recomeço de minha vida. Eu sei, você não me falou nada. Você simplesmente não se importa com aquilo que orbita ao redor de planetas outros que não seu umbigo. Sua trajetória é rasa e previsível. Como um estúpido recomeço. Mas eu não me importo com você nem com sua ideia rasa e previsível de que tudo está de acordo com o que lhe foi padronizado como conceito de adaptação pelos seus ancestrais e seus autores de cabeceira. E se coubesse a você a permissão para que eu discorresse agora sobre o que eu chamei antes de minha vida eu recusaria. Mas não cabe. Da mesma forma que não cabe a mim recomeçar o que nunca começou. Você não é nada mais que um daqueles amaldiçoados quadros de crianças que choram. Se te viram de ponta cabeça, se te invertem num espelho, se te inclinam poucos graus para a direita ou para a esquerda, você vai ver que está sendo devorado por um impiedoso e grotesco monstro, enforcado pelas mãos da sua mãe ou aliciado por seu socialmente exemplar vizinho. E tudo que cresce, porque tá fora do seu controle, são suas unhas e seu cabelo.

segunda-feira, 15 de agosto de 2011

comprei um tanque de propano e meio quilo de pólvora numa das filiais daquela megastore de materiais de construção. qualquer site liberado pelo AVAST ensina a fabricar bombas caseiras e qualquer romance meia boca acaba com essa palhaçada de amor. a coisa por aqui está assim, num enorme painel de cortiça estou pregando todos os meus planos (te agradeço por ter levado aquele quadro horroroso. eu o cobria com um lençol quando você saía) e atualizando as etapas com aquela BIC quatro cores. O verde vive falhando, mas não encare isso como um obstáculo. eu escrevo em vermelho e uso um asterisco que deixa bem claro, isso é verde. eu venho fazendo isso o tempo todo, desde que recuperei a capacidade de discernimento que você me tirou. um dia você irá acordar com uma bomba algemada no seu tornozelo. a bomba que eu construí pra você. fique tranquilo, você só vai ter a sensação de que o despertador tocou antes da hora.

quinta-feira, 11 de agosto de 2011

Há garotas que sabem dar o melhor de si, que se permitem trazer uma sacola de papel com um verdadeiro tesouro: vodca decente, pão francês, cigarros e balas de hortelã, e também comprimidos pra ressaca. Elas sabem que você é um prisioneiro e não um paspalho que se faz passar por artista, e se não sabem, pelo menos fingem com graça.
Garotas que ajudam a enxotar o cara do aluguel, que pegam a correspondência e jogam fora sem abrir porque são espertas, sabem que gente como você não recebe cheques de fundações, revistas nem cartões de Natal, que o mundo lá fora só quer encher o seu saco. Elas não dizem que você é infiel, dizem que você se vira como pode
Garotas que coçam as suas costas e não fazem perguntas inúteis. Garotas que qualquer um, menos você poderia amar e com isso estragar. Elas não precisam de um marido ciumento, não querem o yuppie amável que rala a bunda para ganhar umas migalhas. Elas se entregam ao prisioneiro, ao cara que bate a porta e apaga este mundo nojento com seus poetas sob medida e suas putinhas honoráveis. Garotas capazes de limpar persianas sem fazer comentários, que sabem quando é hora de ir embora e que jamais levarão uma estúpida flor ao seu túmulo.

Brindo a elas.

Soa como uma velha canção - Efraim Medina Reyes

terça-feira, 9 de agosto de 2011


eu vou legendar um filme inteiro em alemão pra você não entender. colocarei tremas sob as letras erradas e inverterei as falas, vou contar a história do final pro começo com um pequeno intervalo forçado aos 34 minutos que tornará as coisas ainda mais inverossímeis. um sutil curto-circuito e a tecla stop não funciona mais. eu não levo pilhas oxidadas a nenhum centro de coleta. continuam todas aqui, espalhadas pelas gavetas num sistema aleatório de distribuição. Ende.

sexta-feira, 5 de agosto de 2011

você faz um gargarejo com listerine para dissolver um bolo de algas preso na garganta e aprende que girino em inglês é tadpole. há uma gambiarra indetectável no encanamento do seu banheiro e você sabe disso pelo sorriso sarcástico do antigo zelador que você observa pela pequena angular do olho mágico. ele se casou pela segunda vez e abandonou o par de gêmeos porque não tinha como distingui-los. o aspirador incrível que você parcelou no cartão de crédito não alcança os cantos senoidais projetados pelo estagiário do niemeyer e suas plantas artificiais andam estranhamente atraindo insetos. o sistema de alarme é precário mas você tem a impressão de que ele vai disparar a qualquer momento. você tem bem mais que doze problemas bucais.

terça-feira, 2 de agosto de 2011

eu costumava ouvir neil young e ler caio fernando abreu. coisas como "eu constantemente sinto saudade das coisas que perco mas não as quero de volta. já doeu uma vez", assim que você partia. aí eu me arriscava nos horóscopos inventando ascendentes que eu não tinha. e sempre dizem, tem que ver a lua também. a lua. eu não me importava muito com aquela cara de cartão postal da lua. a lua pra mim sempre serviu para iludir cachorro desavisado ou mote para falarem do outro neil, o armstrong. e eu até falaria dele, pro tempo sem você passar. eu tocaria a campainha da vizinha do 63 com um pretexto qualquer. um abaixo-assinado solicitando a instalação de uma antena parabólica capaz de captar a transmissão de uma rádio-novela inédita de h. g. wells onde recuperam, no penúltimo capítulo, as últimas cartas que trocamos.