quarta-feira, 27 de junho de 2012

“o resto é estática” - Bruno Bandido

tinha esse velho deitado ao meu lado no hospital. nós dois com problema distintos nos rins – o dele era um problema de velho, o meu de um fudido azarado. a enfermeira trouxe a nossa comida. vinte anos sem comer sal, ele disse. vinte anos, eu pensei, talvez o problema não fosse de velho – mas então o olhei novamente e percebi que ele já era velho há vinte anos atrás. era o meu primeiro dia.  falei a ele que, no meu caso, era só por um tempo e ele disse ‘o meu começou assim, só por um tempo. vinte anos sem comer sal!!’. lembrei do livro da Adriana Brunstein que eu tava lendo por ali. Estado Fundamental. foi uma ótima companhia naquele hospital. um personagem do livro também não comia sal. o velho bem que podia ser um personagem do livro. um pai que se faz de vítima ou um tio moribundo com ótimas tiradas. ele me falou do filho dele, reclamou do cara. pensei de novo no Estado Fundamental. você vai saber quando tiver filhos, ele disse, é um problemão. eu já tenho um, mas ele mora longe, eu disse. porque a mentira pode ser um bocado de coisas, né Adriana? inclusive um filho meu (com uma mãe franco-belga) que corre pelado tal como um mini-selvagem nas praças de Bruxelas em julho durante o verão. tem cinco anos. até hoje só conheço o moleque por fotos.
já eu não tenho nenhuma foto do meu filho, disse o velho, mas ele vai lá em casa todo dia 6.
todo dia 6?
é que todo dia 5 eu recebo do INSS, tu sabe.
eu sabia, e enfiei a cara no livro pra seguir nele e investir na tentativa de fazer o velho parar com a conversa. eu já disse, é um puta livro. o personagem principal é um grande mentiroso. eu também sou. e sou tão miserável que também podia ser um personagem do livro. porque o romance é uma galeria de miseráveis, um desfile de  fracasso – tudo escrito com a manha de uma phd em física com muito bom gosto e talento literário.
dois dias depois, o filho do velho apareceu no hospital. eu tava nas últimas páginas do livro e tentei me concentrar pra não prestar atenção na conversa dos dois. mas quem eu tava querendo enganar? o filho sorriu o tempo todo, falou sobre o tempo e sobre uma tal de Sofia, que não quis entrar e ficou esperando lá fora. agora eu investia em Sofia. ela também tava dentro do livro, mais do que o filho – ele não me agradou, fingia quase bem que era feliz. eu preferia a imagem que tinha dele antes de vê-lo, mas talvez fosse só a imagem do personagem da Brunstein, sei lá, aquele cara ali no quarto (visitando o pai com uma cara de fiscal do IBGE) não jogava pôquer com um barman frouxo, um anão batedor de carteiras e uma mulher mosca de bar desolada  - como na cena linda (linda de gritar olé) que a Adriana escreveu com maestria e encerrou um capítulo do livro com aquele tipo de beleza tão funda que só a tristeza pode proporcionar.
no outro eu acordei e tava sozinho no quarto. a cama do lado vazia e arrumada. eu já tinha acabado o livro e vai ver era por isso. vai ver aquele velho nem existia. perguntei pra enfermeira já esperando por ela me encarar uns segundos com cara de médium perdendo a virgindade com o além e perguntar “Que velho?”. mas ela só disse que a pressão dele foi às alturas durante a madrugada e o levaram do quarto. Tu não acordou?
Não, eu disse.
Esse soro e os remédios te deixam com sono pesado.
Deve ser, eu disse. A dor eles não tiravam. Virei pro lado e voltei a dormir.

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